Rafael Sampaio – Carta Maior
RIO DE JANEIRO - Henrique George Mautner, mais conhecido como Jorge Mautner, iniciou sua carreira artística em 1958, quase por acaso. “Fui artisticamente descoberto na Revista Diálogo, onde textos meus foram publicados por Paulo Bonfim, Guilherme de Almeida e pelo filósofo Vicente Ferreira da Silva”, afirma ele, em entrevista à Carta Maior concedida durante a Bienal de Arte e Cultura da UNE.“Filiei-me ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1963 e publiquei minha saudação a Brasília, que é o livro Kaos. Antes mesmo da cidade estar pronta, estive por lá, em 1958 e 1959”, afirma Mautner, que segue como um dos mais vigorosos artistas de sua época.Premiado com o Jabuti de Revelação Literária, em 1962, pelo livro Dança da Chuva e da Morte, Mautner participou do Tropicalismo, movimento artístico tupiniquim capitaneado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Gal Costa, entre outros. Conhecido pela alcunha de “artista maldito”, Mautner inspirou-se nos hippies e no movimento beatnik para criar, escrever e compor.Autor de dez livros, como Kaos (1963), Narciso em Tarde Cinza (1965), Vigarista Jorge (1965), Fragmentos de Sabonete (1973), Sexo do Crepúsculo (1982) e Floresta Verde Esmeralda (2002), Mautner ainda é poeta, cartunista, violinista, pianista, compositor, artista plástico, cineasta e cantor. Há três meses, ele lançou uma autobiografia, chamada O Filho do Holocausto, na qual conta detalhes de sua vida que até então permaneceram obscuros.Seu lado mais famoso é o de compositor musical. Mautner é considerado um dos mais gravados compositores em vida no Brasil. Dentre as suas criações, estão as músicas Lágrimas Negras, gravada por Gal Costa; O Rouxinol e Herói das Estrelas, gravadas por Gilberto Gil; e também Maracatu Atômico, que fez história na década de 70 e retornou como sucesso retumbante na voz e na ginga de Chico Science, morto há exatos dez anos em um acidente automobilístico.Dentre tantas criações de Jorge Mautner, encontra-se o filme O Demiurgo, considerado por Glauber Rocha como “o melhor filme já feito sobre o exílio”. Gravada em Londres em 1970, esta película reúne diversos artistas expulsos do país, como Jards Macalé, Dedé Veloso, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Leilah Assunção, Roberto Aguilar, Sandra Gadelha e o próprio Mautner, em uma trama chamada pelo artista de “chanchada filosófica”.Hoje, Mautner mantém o Pontão da Cultura do Kaos, que já visitou 22 pontos em cinco estados do país (São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Rio Grande do Norte). As apresentações performáticas de Mautner e Jacobina, montadas com causos, poesias e canções, abordam temas históricos que inspiram novos olhares sobre o mundo. No próximo dia 10 e fevereiro, fará a primeira apresentação do Pontão de Cultura do Kaos de 2007. O evento, aberto ao público, acontecerá às 15h no Instituto Pensarte (Alameda Nothamnn, 1029), e terá a participação do maestro Jacobina e do músico Jean Kuperman.
Leia a entrevista exclusiva que Mautner concedeu à Carta Maior:
Carta Maior - O que você acha que está sendo feito de mais importante, em termos de cultura afro-brasileira, no Brasil?
Jorge Mautner - A cultura afro-brasileira inaugurou, desde uma nova possibilidade de mundo, uma nova visão, que é algo além da mistura e da miscigenação. É um amálgama, nas palavras de Jorge Caldeira [autor do livro Noel Rosa, de Costas para o Mar], que não foi só feito com a independência de José Bonifácio em 1823, mas foi muito mais.O amálgama brasileiro é reinterpretado a toda hora. E existe uma absorção dos elementos que compõem esta alquimia, sejam eles indígenas, negros, europeus. Os bantos [grupo étnico africano] logo se misturaram com os índios e inventaram o Cururu [dança típica do Mato Grosso, organizada nas festas de São Benedito], o Cateretê ou Catira [típico do interior de São Paulo e Minas Gerais], e também esse obra amálgama criou a nossa viola caipira, e o nosso samba, que é antiqüíssimo.É bom lembrar a artística maravilhosa de Abdias Nascimento, que foi homenageado aqui, na Bienal da UNE. E também lembrar que a cultura negra invade tudo. O que é o Rock n’ Roll? O que é Rhythm and Blues? Veja você: o próprio Pavarotti quer cantar com o Caetano Veloso. Então, hoje em dia, a cultura negra tem uma abrangência enorme. A nossa música, assim como o futebol, tem ginga afro-brasileira. É a manha e a artimanha, e isso me lembra a capoeira, que é uma arte marcial inacreditável.Muita gente acha que a capoeira é só música e luta, mas não. Há uma linguagem simultânea, tríplice, que mistura a brincadeira, a dança, e a luta também. Ou seja: quando hoje se fala em multiplicidade, em simultaneidade, no mundo digital e quântico, basta olhar para a nossa cultura e vamos ver que isso já existe há muito tempo. Nossa cultura renova-se sempre, apesar de ter raízes antigas. Veja o hip-hop, o funk e o rap.Quero lembrar, inclusive, que o rap é literatura. Se a letra foi abandonada em outros estilos musicais, como a música eletrônica, com o rap a letra ganha importância. A letra está ligada às crises sociais, mas também às crises existenciais. Não existe mais essa separação do gênero musical, como quando comecei minha carreira: “eu faço letra de música social” ou “eu produzo música individual”, não, hoje em dia tudo está amalgamado, e o melhor, que é com clareza total.O Brasil é um gigante que se fingiu de invisível até agora. Mas não dá mais. Ou o mundo brasilifica-se, ou vira nazista. Nós somos a chave para compreender o futuro. Não é só o futebol, a música, as artes... É como já disse: “Jesus de Nazaré, os tambores de candomblé”.Na França, de onde vem a nata da realeza da Filosofia mundial, há um grupo de jovens que lançarão um livro chamado Teoria Rebelião conosco [do Ponto de Cultura do Kaos]. Estes jovens se intitulam “Os Sem-Filosofia” e estão desesperados com a situação mundial. Eles pedem auxílio aos artistas e intelectuais brasileiros para acabar com a terrível “compartimentação do conhecimento” que vitimou os europeus.
CM - O que dizer do maestro Julio Medaglia [criador do arranjo musical de “Tropicália”, canção de Caetano Veloso], que considera o hip-hop e o rap como “anti-música” por não haver melodia, apenas um ritmo monocórdico?
JM – Acho estranho, porque o funk, o rap e o hip-hop são de uma grande sofisticação, porque vão além da música tradicional. Tudo no Brasil começou como o mangue beat, que reúne a dissonância da música eletrônica e o ritmo dos tambores recifenses.Agora, pense: o rock quando surgiu era considerado pecado, considerado subversivo, mas nunca deixou de ser ouvido pelas pessoas. Indo além: o próprio samba era proibido pelo governo federal, até o início do Estado Novo, por ser altamente subversivo. Na década de 30, no Brasil, você poderia ouvir chorinho, lundu, modinha, mas o samba era um perigo.Está aí a origem do nome da primeira escola de samba do Rio de Janeiro, “Deixa Falar”, da qual faz parte o músico Luiz Melodia e que hoje se chama Escola de Samba Estácio de Sá.
CM – A propósito do tema “Deixa Falar”, você foi o primeiro artista brasileiro a ser exilado e um dos primeiros a ter sua obra censurada. Conte um pouco dessa época.
JM - Eu fui artisticamente descoberto em 1958 na Revista Diálogo, onde textos meus foram publicados por Paulo Bonfim, Guilherme de Almeida e pelo filósofo Vicente Ferreira da Silva. Em 1962, recebi o prêmio Jabuti de Revelação Literária, com Deus da Chuva e da Morte. Eu conto tudo isso numa autobiografia recente, publicada pela editora Agir, chamada O Filho do Holocausto. Bom, em 1963, eu me filiei ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e publiquei Kaos com K, que para mim é uma saudação para Brasília. Antes mesmo de a cidade ficar pronta, estive por lá, em 1958 e 1959. Na época eu também escrevia uma coluna no jornal Última Hora, chamada de Bilhetes do Kaos. Um ano depois do golpe, em 1965, publiquei dois livros,Narciso em Tarde Cinza e o famoso Vigarista Jorge; por causa deles e por um disco com as músicas Radioatividade e Não, Não, Não eu fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional.Fui exilado para Nova York, depois para o México e depois fiquei sabendo que Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam em Londres. Lá, em 1969, eu os encontrei e filmei uma chanchada-filosófica chamada O Demiurgo, que tem vários artistas no elenco, incluindo os dois e eu mesmo.Caetano e Gil sempre quiseram voltar para o Brasil. Mas o comando da ditadura estava com os militares “linha-dura”, com [Garrastazu] Médici no poder. E os partidos não acreditavam que o regime estivesse chegando ao fim. Então a linha moderada do regime militar deu um sinal de que nós, artistas, poderíamos voltar para acelerar o processo de redemocratização. Então eu, Gil e Caetano chegamos ao Brasil em 1972.
CM – Enquanto você esteve no exílio, o regime militar chegou a monitorar suas atividades?
JM– Sim. Havia um sujeito que me procurava a toda hora, pedia meu endereço, e dizia ser meu fã, em Nova York. Eu recebia a visita do companheiro Roberto Schwartz, do PCB, uma vez por mês. Esqueci de dizer, mas fiz parte do Partidão por 30 anos. Bom, lá nos EUA, eu continuei minhas atividades políticas e reunia-me com os Panteras Negras, com os Students for a Democratic Society e outros grupos. A minha esposa, a Ruth, desconfiava desse sujeito que me seguia, ela dizia haver algo estranho. O sujeito disfarçava bem, porque conhecia a minha produção artística e também tinha uma “bagagem artístico-literária”. Anos depois, em 1985, eu já estava no Brasil e participei de um show no Rio de Janeiro. O tal sujeito foi me procurar no show para dizer: “Você lembra de mim? Naquela época, eu estava em missão pelo SNI [Serviço Nacional de Inteligência] e acabei virando seu fã”. Foi uma história engraçada. Além desse fato, eu sabia que havia espiões da ditadura seguindo de perto os passos de Gil e de Caetano, em Londres.
CM – Como ex-militante do PCB, qual tua opinião sobre a pauta racial dentro da esquerda brasileira, nos anos 1960? Pergunto isso porque foi tema de um debate ocorrido aqui na Bienal da UNE.
JM – O problema é o seguinte: a concepção do Partido era européia, e ele atuava no plano abstrato. Para o Partido, estas questões raciais eram alienadas. Não podia haver etnia, isto era coisa dos fascistas. Então, na esquerda, existia esse preconceito errado, que limitava a nossa atuação. Limitou a tal ponto que alguns setores da esquerda negavam o indivíduo e o desejo de prazer. Eu vou lembrar aqui o Leon Trotsky que, na véspera de sua morte, nos últimos escritos publicados no México, fez uma autocrítica. Ele assume que errou muito ao menosprezar a importância das etnias, do indivíduo, dos nacionalismos locais e das culturas. Acho que foi o grande erro dele, que era o mais abstrato e internacionalista de todos os revolucionários. Enfim, ele mesmo admitiu isso por escrito.Não tenho dúvidas de que o turbilhão existencialista, a realidade tão múltipla, a realidade aguda do ser humano, foi negada por tradição. É, de certa forma, uma herança do colonialismo. Existia esse favorecimento da erudição, do militante que é doutor e dos que não são doutores. Mas acho que tudo isso foi refeito no Brasil, de um jeito ou de outro. Porque aqui é a nação onde há o amálgama da predominância negra na sociedade, incluindo na esquerda. Aqui o candomblé foi reinventado e na África ele é imanentista, geográfico. Por uma genialidade, no Brasil, foram criados os arquétipos muito antes de Carl Gustav Jung [psicanalista suíço].
CM – Mautner, conte para nós sobre seus mais recentes projetos com os Pontos de Cultura.
JM – Pois é, tem o Ponto de Cultura do Kaos, onde eu trabalho. E desde março do ano passado estou visitando vários Pontos pelo país todo, viajando para a Amazônia, para Brasília, para São Paulo, para Goiás, para Pernambuco, para Pirinópolis, para Natal... O primeiro Ponto de Cultura que visitei foi em Belém do Pará, para encontrar o mestre Verepeto, um ícone do carimbó [dança indígena surgida na Ilha de Marajó]. Depois fui para a pequena cidade de Abaetetuba [localizada no Pará], em que fiquei duas semanas para ver os remanescentes de quilombos.Visitei Pontos de Cultura na zona da mata do Recife, como o terreiro de Xambá [primeiro quilombo urbano de Pernambuco]. Trata-se da única casa de candomblé com uma memória histórica preservada, com lembranças das perseguições sofridas. Há até um museu, em um dos andares da casa. Também na zona da mata, eu conheci muito do maracatu.É impressionante o que você encontra pelo Brasil afora. Em São Paulo eu encontrei um Ponto de Cultura evangélico, cuja música tradicional é o reggae. Trata-se de uma novidade antropológica sem fronteiras. Neste lugar, Nelson [Jacobina] e eu tocamos música de candomblé, de umbanda, e todos os presentes nos acompanharam e cantaram. Cada Ponto de Cultura vai além da imaginação, o entusiasmo é total e o amor pelo Brasil é absoluto, mas não é xenófobo, é de um otimismo inacreditável.
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