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sábado, 20 de março de 2010

ENTREVISTA COM GLAUCO MATTOSO, POETA



ARTE & POLÍTICA: Para você, o que é poesia? Qual a sua função no mundo
de hoje?

GM: Poesia pra mim é um desabafo pessoal e um protesto coletivo ao mesmo
tempo. Cada poeta desabafa à sua maneira e a partir de sua experiência,
mas todos representam o inconformismo geral. Acho que a função da poesia
é sempre atual: mostrar instantaneamente que o presente é melhor que o
futuro e pior que o passado, mas sempre admitindo a probabilidade dum
milagre que inverta os termos desta equação.

A&P: Quando tomou a decisão irrevogável de se tornar poeta?

GM: No momento em que percebi que um dia, no futuro, eu perderia a visão
e que, no passado, já tinha perdido a honra um dia. A consciência da
inferioridade faz com que a gente tente superar a impotência pelo menos
através dum grito de desespero. Esse momento aconteceu por volta dos
vinte anos, mas o primeiro poema saiu alguns anos depois, na época em
que passei por uma das muitas cirurgias no olho congenitamente condenado
pelo glaucoma. A cegueira total acabou vindo por volta dos quarenta, mas
a revolta já estava dentro de mim desde a infância, inclusive porque,
devido à deficiência visual, fui sadicamente abusado pelos moleques da
minha idade e me tornei masoquista.

A&P: Por que poesia vende tão pouco?

GM: Porque desabafos não são artigos de consumo. A maioria das pessoas
desabafa xingando em voz alta e prefere consumir doces, flores ou
canções que aliviem seu próprio desespero, ao invés de comprar uma
amostra escrita do desespero alheio. Afinal, pra que compartilhar a
desgraça dum poeta se podemos gastar esse dinheiro com um tênis novo pra
satisfazer a vaidade ou um maço de cigarros pra satisfazer o vício? Se
for pra consumir algo impresso, as pessoas dão preferência a volumes
maiores, nos quais a quantidade de texto parece compensar mais o valor
gasto. Acho que é o efeito psicológico do próprio tamanho do objeto
físico, no caso um livro cheio de letras ao invés de outro parcialmente
recheado.

A&P: O pensamento pós-moderno deflagrou uma crise existencial no
meio acadêmico, que perdeu seus referenciais de avaliação crítica.
Concorda com isso? Como resgatar uma crítica nobre, altiva e competente,
que fomente a leitura de poesia e ajude o país a valorizar os
verdadeiros poetas?

GM: Dois fatores sempre contribuíram para o proverbial comodismo da
crítica: a genealogia e a necrofilia. Todo autor digno de estudo
"descendia" duma linhagem (entre as escolas literárias), e um autor só
mereceria exame se pudesse ser autopsiado. Hoje faltam rótulos-gavetas
tipo "ismo" onde o crítico possa arquivar os dossiês individuais. Por
outro lado, a instantaneidade e a volatilidade dos conceitos estéticos
multiplicam os casos a serem objeto de biópsia antes que percam a
identidade. Os críticos simplesmente não estão preparados para tanta
mutação constante. Acho que a única solução seria pararem de querer
deixar testamento e procurarem no máximo tirar uma foto de determinado
autor num determinado momento. O crítico tem que perder a mania de ser
arqueólogo, precisa começar a trabalhar como fotógrafo. Num país
injusto, os poetas a serem valorizados na galeria dos retratáveis são
justamente os que mais se desnudam como injustiçados, computando-se aí
tanto a injustiça humana quanto a "divina".

A&P: Quais são os poetas nacionais que mais o influenciaram? E
internacionais?

GM: Sou apontado como "descendente" de Gregório e Bocage, mas muitos
estranhariam se eu dissesse que foram os parodistas macarrônicos (tipo
Juó Bananere, Furnandes Albaralhão ou Zé Fidelis) os que primeiro me
fizeram a cabeça, ainda adolescente. Não nego a herança gregoriana e
bocagiana, como não nego a oswaldiana e a concretista, mas acho que não
se pode minimizar o potencial vanguardista da sátira, do contrário
teríamos que desmerecer o papel do humor no dadaísmo, no surrealismo ou
no absurdismo, por exemplo. Por isso dou a mesma importância a um Emílio
de Menezes e a um Augusto dos Anjos na minha bagagem, e equilibro a
balança entre os malditos franceses e os rockeiros ingleses na minha
estante de livros e discos.

A&P: Como vê o cenário contemporâneo da poesia brasileira? Citaria
alguém? O que gosta e o que não gosta?

GM: Começando pelo que não curto: poema sem formato, sem ritmo, sem
contorno, pra não falar da falta de rima, de métrica, de tonicidade.
Depois que fiquei cego passei a supervalorizar a palavra medida,
compassada, rimada. Encaro com desânimo a suposta herança "libertária"
do modernismo. Os modernistas adotaram o verso livre mas tinham profundo
conhecimento do verso regrado contra o qual se posicionavam. O mesmo
pode-se dizer dos concretistas em relação à geração de 45, mas o que se
nota atualmente é a total ausência de referenciais, tanto na direção do
rigor quanto da indisciplina. Mas noto em autores mais bem-informados,
como Paulo Henriques Britto ou Bráulio Tavares, Caetano ou Chico, uma
tendência a preservar as características mais técnicas e as
possibilidades mais criativas da poesia nacional, sem esquecer da
saudável tradição nordestina do cordelismo como mantenedora dos recursos
mais elementares da versificação lusófona.

A&P: Considerações finais?

GM: Só a consideração de que nada deve ser desconsiderado em poesia.
Mesmo aquilo que parece formalmente desprezível (como o palavrão ou a
gíria) e tematicamente repugnante (como a violência ou a perversão) tem
sua função no contexto poético, desde que seja trabalhado com
autenticidade e autoridade, isto é, fielmente a uma vivência e a uma
bagagem intelectual. Não se falou aqui de ideologias ou tendências
políticas, como se poderia esperar, mas fica implícito que a incorreção
política é uma das mais eloqüentes formas de militância artística.

A&P: Questão adicional — Para você, qual a relação da arte com a
política? A arte pode contribuir para a tomada de consciência política
do leitor? O niilismo não seria também uma espécie de fundamentalismo? A
incorreção política, a partir do momento em que se tornasse obrigatória,
não seria também mais uma amarra? Existe arte de esquerda? Ou de
direita?

GM: A única relação possível da arte com a política é a sexual. Quer
dizer, uma fode a outra, reciprocamente, mas não na base do troca-troca.
O niilismo não pode ser um fundamentalismo porque é um saco sem fundo,
isto é, comporta tudo e não impõe limites, ao contrário dos sectarismos.
A incorreção política é incompatível com a obrigatoriedade, já que é,
conceitualmente, a negação das regras bem-comportadas. Não existe arte
de esquerda nem de direita, assim como não existe humorismo a favor, só
contra. Arte engajada deste ou daquele lado é meia arte: a de esquerda
seria só "ar" e a de direita só "te". A função da arte não é abrir os
olhos do leitor: é fazê-los se arregalarem. Principalmente se o artista
for cego...

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